22.5.07

Quais últimas palavras

I
Champs-Élysée. Fim de tarde. Um casal de meia-idade sentado à mesa de um elegante café. Não são franceses, são americanos. Estão lá a passeio, como fazem todos os anos. Ambos sorriem muito, não por vontade, mas por costume. Ela descobriu que ele tem um caso com a chefe; ele sabe que ela dá pra qualquer um. Ambos colocaram veneno no café do outro. Ou pensam que colocaram, ambos remexeram os pertences do outro no hotel antes de sair e trocaram o veneno alheio por um placebo.

II
Marina de Monte Carlo. Alta madrugada. Um excêntrico milionário russo radicado na Grã-Bretanha promove uma festança em seu iate, que está prestes a deixar o cais para que a festa possa se transformar em orgia sem ser importunada pelos paparazzi. Mal sabe ele que as modelos e escorts contratadas estão a serviço de um tablóide inglês, trazendo microcâmeras escondidas nos implantes de silicone. Ao amanhecer, as bancas londrinas já estamparão detalhes sobre costumes e obturações tanto seus quanto de seus colegas.

III
Pirâmides de Gizé. Três da tarde. Um grupo de turistas japoneses tira fotos das pirâmides, do deserto, do sol, do guia, dos outros turistas japoneses. O guia já conduziu muitos grupos de turistas japoneses que tiram foto de tudo, mas isso não o deixa menos incomodado, pelo contrário. Quando um dos turistas japoneses lhe pede para que pose como os egípcios dos hieróglifos ("e dos videoclipes"), não é mais possível agüentar: ferido tanto no orgulho cívico quanto no pessoal, ele perde o controle e grita, chora, se desespera, agita os braços freneticamente na direção dos turistas japoneses que para ele são todos iguais, todos superficiais com suas câmeras e bonés e camisas e rostos todos iguais. Os turistas japoneses então todos dizem "oh!" e tiram mais fotos do guia.

IV
Avenida Paulista. Por volta do meio-dia. Os bancos e escritórios despejam o mar de engravatados no sertão de concreto dos imigrantes que habitam as calçadas. A caminho do carrinho que vende sanduíches de calabresa, alguns dos supracitados cidadãos deixam esmolas para um decrépito aleijado. Não percebem se tratar de Dom Sebastião, legítimo herdeiro e abençoado salvador do império português, ex-colônias possivelmente incluídas. Ao retornar do almoço ainda irão reclamar que o país não vai para a frente, além de culpar o stress pela indigestão.

V
Champs-Élysée. Fim de tarde, um ano depois. O mesmo casal americano de meia-idade sentado à mesa do mesmo elegante café. Ambos sobreviveram a várias tentativas de assassinato por parte do outro. Desta vez, cada um envenenou o próprio café. Ou pensam que envenenaram, ambos remexeram os pertences do outro no hotel antes de sair e trocaram o veneno alheio por um placebo.

15.5.07

A banda

Às vezes, até aqueles que sempre caminham apressados pensam ter ouvido música na distância, no vento, na poeira que insiste em entrar nos olhos. Pensam ter visto música, ter sentido música. Param por um segundo e deixam que o quase-silêncio toque as notas que trazem de volta a leveza dos movimentos. Mas após esta eternidade esfregam a poeira dos olhos com a manga da camisa e seguem adiante com seu passo apressado. As lágrimas, apenas utilitárias.

Acontece que, muito raramente, um ou outro destes ocupados indivíduos esbarra na banda, e sabe-se que durante estes últimos e agonizantes instantes em que são pisoteadas pelos trompetistas, pratistas e, nos casos mais graves, até pelo tocador de tuba, muitas das vítimas deixam escapar um sorriso incólume, o que faz com que a banda acelere o compasso e as testemunhas o passo. As lágrimas, pequenas dúvidas com gosto de sal.