22.1.07

Os cinco ou dez corações

De um dia para o outro, o pequeno deu de falar tudo direitinho, assim, com começo, meio e fim. Os pais ficaram desesperados:

-Não sei, doutor, não entendo. Até outro dia mesmo ele divagava e dava voltas e falava em círculos, começava contando da escola e terminava falando em sopa de camarão ou tênis fluorescente, mas agora é só três palavras e ponto e pronto, disse o que tinha pra dizer, e a gente não sabe o que fazer, né, aí fica aquele silêncio - disse a mãe.

-É - disse o pai, com toda a solenidade com que é possível dizer uma única letra.

-E a gente não sabe o que fazer, né, então tenta falar alguma coisa, sabe, qualquer coisa, pra ver se ele se anima, mas não sei, ele também não parece desanimado, fala o que tinha pra falar e corre de volta pra rua pra brincar, não sei se ele percebe, é tudo tão estranho, doutor, de um dia para o outro, eu te digo!

-De um dia para o outro - repetiu o pai, com ênfase em todas as palavras, e ênfase-e-meia no "de" e no "para".

-Sempre tão educado, quer dizer, ele sempre foi educado, mas agora além de tudo tão direto, quer dizer, não é que seja formal, por assim dizer, mas não deixa de ser direto, sabe, "obrigado mamãe!" em vez de "puxa vida mamãezinha querida muito obrigadão um dia eu vou te dar um milhãozinho de flores quando eu puder comprar e você sabia que a minhoca tem cinco corações, ou eram dez?!", sabe?

Nisso o pai ficou quieto, já que a senhora sua esposa, ao imitar os agora extintos barroquismos do filho, propiciara um espetáculo que, apesar de condizente com o desespero que a situação causava, excedera todos os limites do ridículo, especialmente no agitar dos braços e no bater dos pés, que mais lembraram um chimpanzé tocando bateria do que o expectante gesticular do pequeno. O doutor, percebendo o desconforto do casal - ele por causa dela, ela por não fazer idéia de porque todos estavam em silêncio - aproveitou para dar sua opinião, já que se tratava de um caso banal, de fácil solução:

-Não há com o que se preocupar. Comprem um cachorro, ou papagaio se morarem em apartamento. Acredito que em apenas alguns dias vocês já se sentirão melhor.

As esperas

O sol já terminava a descida por entre os prédios, e agora estava exatamente de frente para seu rosto. Arrependeu-se de não ter trazido os óculos escuros, mas quem sairia de casa com óculos escuros àquela hora, naquela cidade cheia de prédios que tapam o sol a toda hora? Mas ali estava, sentado de frente para o sol, no que ele julgava agora ser o único local na cidade inteira onde era possível ser banhado diretamente pela luz do astro-rei. Então achou graça, e por um momento viu-se muito longe dali, lembrando-se das tardes no sítio do avô, quando corria e pulava e caía por horas até ver o sol descendo, quase sumindo, e então cansava e deitava na grama e ficava olhando o sol desaparecer devagarinho atrás das colinas na distância.

Foi devolvido à realidade por um tropeção do garçom em sua cadeira; o bar começava a se encher de gente que, recém-encerrada a sexta-feira de trabalho, antecipava o princípio do fim-de-semana ainda carregando seus paletós e gravatas, e os garçons faziam o possível para não acertar um cotovelaço nos clientes mais bem vestidos. Arrumou-se no seu lugar, puxou a cadeira mais para a frente e acendeu um cigarro enquanto tentava distinguir as formas e feições das figuras que caminhavam vindo do lado do sol, que agora já estava prestes a desaparecer mas ainda lhe batia na cara e o impedia de reconhecer quem quer que fosse que viesse pela calçada. Talvez fosse melhor assim, talvez fosse melhor não percebê-la desde longe quando ela chegasse, pois ao vê-la se comportaria como um idiota na tentativa de fazer de conta que não a tinha percebido, na tentativa de fazer de conta que estava distraído e que não se preocupava com a hora em que ela chegasse contanto que chegasse. Mas não seria assim, o sol logo desapareceu em meio ao concreto já mal-iluminado pelos postes, e de repente tudo tomou esse aspecto de hora perdida, de não-é-mais-dia-mas-ainda-não-é-noite, em que os últimos restos de claridade só servem para abafar a luz das lâmpadas que acendem, dando às ruas da cidade esse brilho fosco que passa ao voyeur a impressão de ver sem ser visto, e ao paranóico, a de ser visto sem ver.

Acendeu outro cigarro enquanto tentava se adaptar à ausência de luz natural, embora se sentisse à vontade em não enxergar quase nada além das mesas exatamente à sua frente. Apenas se todo o tempo fosse assim, o sol ofuscando-o providencialmente durante o dia e o não-sol o deixando às cegas durante a noite. Mas sabia que logo voltaria a enxergar tudo, e voltaria a ver tudo com a maior claridade possível, sabia que a luz que se lançava sobre tudo o que via não era a luz do sol ou a luz das lâmpadas nos postes, mas sim sua própria luz, seu próprio brilho, essa cabeça iluminista que lançava a razão sobre todos os episódios de sua vida e o transformara desde pequeno nesse monstro racional, nessa aberração intelectual, nessa criatura terrível que transforma as coisas e as pessoas em um amontoado de verdades. Nunca teria o descanso das pequenas mentiras que fazem o dia-a-dia possível, nunca teria um dia-a-dia possível, todos os dias eram impossíveis e assim continuariam sendo; e sendo os dias impossíveis, também o eram as noites, e por isso não dormia há tempos. Apenas perdia a consciência por algumas horas, mas ao levantar no dia seguinte, continuava exausto; e dessa maneira o cansaço de anos e anos se acumulava. Só não se entregava ao descanso eterno, à solução fácil e absoluta, por não ter certeza de que esse descanso fosse eterno, e a solução absoluta.

Não se entregava, mas esperava. E agora, esperava duplamente. Foi num momento em que pensava cabisbaixo que ela não apareceria mais que percebeu sua chegada - ela já havia se sentado na cadeira à sua frente, e lhe segurava uma das mãos entre seus dedos longos e finos. Levantou os olhos para vê-la, para reconhecer aquele rosto triste que se importava sem entender, sorriu sem motivo, baixou novamente a vista e após entregar-lhe a outra mão agradeceu em silêncio a breve companhia na espera maior.