16.2.07

Aplastado

Terminou a cerveja e percebeu o sujeito à sua esquerda no balcão olhando torto. Não era dali, é claro que iriam olhar torto. Achou ter visto o sujeito cerrar o punho, não dava para saber, não estava olhando para o sujeito, o sujeito é quem olhava. Na dúvida, não esperou para saber e nem pensou em perguntar. Antes mesmo de olhar de volta arrebentou o queixo do sujeito, uma só e mandou direto pro chão. Não gosto de confusão, mas tem gente que provoca, mesmo.

Daí não tinha mais volta. Outros dois se levantaram nos bancos mais à esquerda, um puxou um canivete. Tudo muito rápido, antes que o barman percebesse a confusão ou recolhesse a garrafa vazia o gargalo quebrado já dava conta dos dois, que recuaram tão depressa quanto levantaram. Esses caras, não valem nada, não agüentam dois minutos, cadê o próximo?

Não demorou para o próximo aparecer, grandalhão, tatuagem pra todo lado, de meter medo, mas meter medo em quem, nem precisou da garrafa quebrada. Duas ou três porradas bem dadas no meio do estômago e o grandalhão já estava grogue, mais rápido, cara, mais rápido, todo esse tamanho e lento desse jeito. Só foi rápido pra cair, isso sim, esse bando de mané, pequeno, grande, é tudo mané, querem briga, é? Só tem mané, tudo igual, só tem mané.

Nisso o barman se levanta atrás do balcão, carregando uma escopeta maior que ele. Coitado, tá tremendo mais que vara verde, vai fazer o quê com isso aí, tu não vai atirar não, eu sei que tu não vai, tu é muito banana pra atirar. Mas o barman não é tão banana assim e atira, só que treme tanto que só acerta de raspão e antes que pegue outro cartucho já levou meia dúzia de joelhaços na cabeça. Só precisou de um pra derrubar, mas filho duma puta, essa jaqueta era quase nova, olha agora, cheia de buraco aqui na manga, um monte de sangue, não vai sair tão fácil, puta que o pariu, toma mais um monte pra aprender, seu filho duma puta. Tudo filho da puta.

Foi então que alguém o acertou em cheio nas costelas. Não viu quem foi, nem de onde veio, só sentiu o baque e dobrou para o lado. Mal terminara de se dobrar e tomou outra do outro lado. Caiu para a frente e vai-saber-lá-quantos caíram em cima. Tomou soco, pontapé e cadeirada até se fundir com o chão. O sangue escorrendo pelo canto da boca, preenchendo as narinas, sufocando os sentidos. Pouco a pouco, os ouvidos também parecem encher, e a vista fica turva. Bando de animais, não dá nem pra tomar uma cerveja em paz. Da próxima vez, vou armar um barraco.

2.2.07

Empate técnico

Já andavam pelo cais há alguns minutos, talvez mais. Um dia e quase uma noite já pesavam em cada passo dos dois, mas agora o cansaço pouco importava. Ela sorria meio sem saber porquê, ele não sabia por que não sorria - embora achasse graça nisso, também. Talvez porque houvesse percebido que acompanhava os passos dela, agora o pé direito na frente, agora o pé esquerdo, pé direito, pé esquerdo, iam lado a lado como que sincronizados, e desde que se apercebera disso, se sentia quase obrigado a manter o ritmo, o que, àquela hora e naquelas condições, exigia bastante tanto de sua coordenação quanto de sua concentração. Riu, mas não sorriu. Ela aproveitou o vão aberto no silêncio:

-Já é tarde pra estarmos por aí, disse ela, sem levantar os olhos do chão.

-Ainda é cedo pra estarmos por aí, respondeu ele, também sem erguer a vista.

Deram mais alguns passos sem perder o compasso. Alguém que, de muito longe, os visse caminhando, poderia imaginar que alguém passava em frente a um interminável espelho, a não ser por apenas de um lado haver um sem-fim de veleiros, além de uma ou outra escuna.

-Podíamos parar pra descansar um pouco, disse ela, olhos ainda abaixados.

-Podíamos continuar andando até o fim, respondeu ele, concentrado nas passadas.

Ela mal continha o sorriso, e ele, o riso. Ainda faltava bastante para chegarem ao extremo sul da marina; uma levantada rápida dos olhos, e mal era possível distinguir as lanchas dos catamarãs ao longe, ainda mais para ela, que não sabia o que era um catamarã, só imaginava que não fosse o mesmo que uma lancha. Estavam agora um pouco além da metade do percurso do cais, talvez? "Minhas pernas já não agüentam mais." Nenhum dos dois se atreveu a dar meia-volta para olhar para trás.

-Tudo bem, se você quiser, paramos um pouco agora, disse ele, displicente.

-Não, por mim está ótimo, vamos até lá e voltamos, disse ela, insistente.

Continuaram daí em silêncio. Pé direito, pé esquerdo, pé direito, pé esquerdo, até deixarem para trás as últimas embarcações. Pé direito, pé esquerdo, pé direito, parada completa. À frente, só o mar. Levantaram a cabeça quase ao mesmo tempo, e olharam para trás, para a extensão da caminhada, antes de olharem um para o outro. O cansaço era quase maior que a empatia. Enquanto recuperavam o fôlego, divertiam-se ao tentar falar qualquer coisa e serem impedidos tanto pela própria respiração trôpega quanto pela falta do que dizer. Foi ela quem primeiro juntou três palavras:

-Você anda depressa.

Ele sorriu. Ela riu.

1.2.07

Lei da sopa, vol. I: "Atrasado"

(publicado originalmente em janeiro de 2005)

Trancou a porta e chamou o elevador. Enquanto esperava, voltou duas vezes até a porta para conferir se a havia trancado. Não retornaria a seu apartamento por algum tempo, embora ainda não soubesse quanto tempo. Viu o elevador passar reto, subindo até a cobertura. Remexeu os bolsos à procura do isqueiro. Destrancou a porta do apartamento e colocou um pé para dentro, enquanto corria os olhos rapidamente pelo interior da antesala. O ruído do elevador novamente em movimento chamou sua atenção. Rapidamente tirou o maço de cigarros do bolso da camisa e o abriu. O isqueiro estava dentro. O elevador chegou. Ele deu um passo atrás, abriu a porta do elevador e segurou-a com o pé enquanto trancava novamente a porta do apartamento e recolocava o maço com o isqueiro no bolso da camisa. Colocou as chaves no bolso direito da calça, deu mais dois passos atrás e apertou o botão do térreo. Lentamente a porta do elevador voltou até se fechar.

Virou-se para a parede oposta à porta, um espelho que começava na altura da cintura e ia até o teto. Olhou dentro de seus próprios olhos no reflexo. Distraiu-se a ponto de não perceber que o elevador parara. Assustou-se quando a porta abriu, mas controlou-se. Levou a mão suavemente ao cabelo, como se o estivesse arrumando. A bonita jovem que entrava sequer percebeu que o havia assustado. Sorriu para ele através do espelho e cumprimentou-o, embora não o conhecesse. Ele virou-se, abaixou a cabeça e respondeu nervosamente, ainda que de maneira educada. Ela continuou a sorrir para ele até chegarem ao térreo, embora ele mal percebesse. Somente quando ela abriu a porta e saiu é que ele levantou a cabeça e observou-a. Não parecia tão bonita quanto ele imaginara ao vê-la de relance no espelho. Saiu rapidamente do elevador e passou pela moça sem cerimônia. A passos largos, atravessou o hall sem sequer cumprimentar o porteiro. Passou pelo portão e deixou-o entreaberto. Nem percebeu que a jovem havia ficado muito para trás, mas também não se importava.

Assim que colocou o pé na calçada, sentiu o sol forte batendo em seus olhos. Não sabia que horas eram, mas imaginou que já devia ser perto do meio-dia. Parou ao lado do portão. Fez menção de pegar os óculos escuros pendurados na gola da camisa, mas os havia esquecido no apartamento. Preferiu não voltar buscá-los. Viu a moça sair e fechar o portão, caminhando para o lado oposto de para onde ele iria. Franziu as sobrancelhas, pegou o maço no bolso da camisa e tirou de dentro um cigarro e o isqueiro, de uma só vez. Com a mesma mão, pegou também o maço e recolocou-o no bolso. Acendeu o cigarro, colocou o isqueiro no bolso esquerdo da calça e começou a caminhar.

Perguntou as horas para um senhor que lia as manchetes dos jornais numa banca de revistas. Descobriu que eram onze e meia. Não podia ser muito diferente - só com o sol a pino é que era possível entrar alguma luz em meio aos infinitos prédios das ruas próximas. Agradeceu com um gesto leve da cabeça e seguiu em frente, agora duplamente apressado. Abaixou a cabeça, apertou o passo e durante a próxima meia hora preocupou-se apenas em desviar de quem ou o que estivesse exatamente à sua frente. Nem sequer os motivos que o impeliam a apressar-se passaram por sua cabeça; por trinta minutos, ele foi apenas uma locomotiva fumegante, avançando pelas calçadas irregulares enquanto fumava um cigarro atrás do outro, inconscientemente.

Chegou ao meio-dia quase ao mesmo tempo em que seu último cigarro chegava ao fim. Mas não chegara ao seu destino: havia feito a última curva à esquerda uma esquina depois do correto. Olhou em volta procurando as referências que tinha, mas não tinha como encontrá-las. Percebeu que não estava no lugar certo, mas sabia que estava perto de onde devia estar. Soou o apito do meio-dia. Virou-se para a esquina pela qual havia entrado na rua, e voltou correndo. Olhou para a esquerda, depois para a direita. Localizou-se. Correu de volta até onde deveria ter entrado e retomou o caminho certo. Em menos de um minuto chegou, finalmente, aonde queria.

Infelizmente, chegou atrasado. Menos de um minuto atrasado, mas atrasado. Ainda não sabia, então parou e esperou, enquanto tentava, sem sucesso, desgrudar do corpo a camisa empapada de suor. Desistiu, mas sem se incomodar. Bastava, pensava ele, estar ali. Bastaria, tivesse ele chegado a tempo. Mas não chegou. Em pouco tempo, aquela fração de minuto se mostraria uma eternidade; àquele insignificante minuto incompleto somaram-se todos os minutos, horas e dias restantes, até o dia em que não houve mais tempo a ser contado, quando ele finalmente percebeu que não havia perdido somente um pouco de tempo - havia perdido o tempo, para nunca mais alcançá-lo.