2.3.07

Lei da sopa, vol. II: "A caixinha de música"

(publicado originalmente em janeiro de 2005)

Chegou em casa ainda cambaleando de felicidade depois do primeiro beijo. Saltitou até o quarto e pegou a caixinha de música. Pulou na cama, deitou-se de bruços, colocou a caixinha no travesseiro, deu corda e abriu devagar a tampinha. Mas, ao contrário do que esperava, não ouviu a musiquinha de que tanto gostava. "E eu, como é que fico?", disse uma voz fina de dentro da caixinha. Mal a última palavra foi dita, a menina fechou rapidamente a tampa, assustada. Um "ai!" abafado ainda pôde ser ouvido.

Ficou parada, boquiaberta, por alguns segundos. Olhou em volta, mas não havia mais ninguém no quarto. Foi até a porta e inclinou-se para o corredor. Estava vazio. Fechou a porta e atravessou o quarto na direção da janela. Também não havia ninguém do lado de fora. Fechou as cortinas e pulou de volta na cama. Pegou a caixinha de música nas mãos e a levou lentamente até perto do ouvido. Não ouviu nada, então sacudiu-a. Além dos esperados chacoalhares dos anéis e brincos ali guardados, ouviu também um grito agudo. Jogou a caixinha no travesseiro e gritou também.

Após um minuto a mãe bateu à porta. Perguntou se estava tudo bem. Ela respondeu que sim. Esperou mais um minuto até ouvir a mãe se afastar antes de fazer alguma coisa. Decidiu, então, descobrir do que se tratava aquilo tudo. Encheu-se de coragem e abriu a caixinha de música.

"Você não pode fazer isso comigo!", disse a pequena bailarina de porcelana da caixinha, num misto de raiva e choro. "Nem isso, muito menos... muito menos aquilo!"

A menina nunca vira a bailarina fazer outra coisa a não ser girar sobre seu próprio eixo enquanto a musiquinha tocava, e tinha a caixinha de música desde quando era muito bebezinha. Nunca imaginou que aquela pecinha de porcelana tivesse vida, muito menos que falasse, embora já tivesse considerado que tivesse sentimentos. Tentou contemporizar:

"Eu não sabia..."

"Você não sabe nada! Pensa que ele gosta de você?"

Também nunca passara por sua cabeça que a bailarina pudesse conhecer o que se passava fora não só da caixinha, como do quarto e da casa. Aparentemente, não sabia nada mesmo. A voz fina repetiu a pergunta:

"Pensa que ele gosta de você?"

"Eu não... eu acho... eu acho que sim..."

"Você não sabe nada! Ele é igual a todos os outros."

"Hã?..."

"É igual a todos os outros!"

"Os outros... os outros o quê?..."

"Os outros homens!"

"Os outros... todos os outros?..."

"Todos! Não se engane. Eles só querem uma coisa."

"Hã?..."

"Eles só querem uma coisa!"

"Só uma coisa?..."

"Só uma coisa!"

"Só um beijo?..."

"Não! Querem fazer coisas horríveis com você. São uns brutos."

"Mas..."

"Não quero ouvir! Você não pode fazer isso comigo. Você me traiu! Você sabe que eu te amo!"

"Hã?..."

"Eu te amo!"

A menina, que já estava preocupada com a situação, prendeu a respiração por um segundo, olhando para a pequena bailarina. Então, com um gesto brusco, tampou a caixinha, ofegando violentamente. Respirava com tanta dificuldade que nem ouviu um novo "ai!" abafado. Não estava entendendo nada. Esperou alguns minutos até se acalmar, e então foi à procura da mãe para fazer-lhe uma pergunta que, esperava, esclareceria sua visão. Encontrou-a na cozinha, lavando a louça.

"Mãe, quando uma menina diz que ama outra menina, é normal?"

Um prato caiu e estraçalhou-se dentro da pia. O pai, sentado numa poltrona na sala ao lado, lendo o jornal, engasgou com o cachimbo, mas preferiu não se meter. Continuou a leitura, embora com um ouvido na cozinha.

"Filha..."

Não sabia o que dizer.

"Não é normal não, né, mãe?..."

A mãe respirou aliviada. "Não é não, filha." A menina sorriu e correu de volta para o quarto. O pai continuou lendo o jornal.

Chegando no quarto, abriu a caixinha de música. A bailarina estava aos prantos:

"Isso já é demais! Conservadorismo! Preconceito! Discriminação!"

A menina apenas sorriu e tampou de volta a caixinha, para um novo "ai!". Subiu de pé na cama e a guardou no armário, o mais alto que conseguiu. Deitou-se e ficou sonhando com o namoradinho.

Ao mesmo tempo, em outro lugar do bairro, ele também pensava nela, embora não estivesse exatamente sonhando.

2 comentários:

Anônimo disse...

... porque toda menina um dia já acreditou, no amor, nos homens ...

bernardo.vianna disse...

Fala, Eugênio!
Acabo de descobrir este seu blog através dos seus comentários lá no blog do Vives. Uma bela surpresa, aliás.
Abraço!