27.11.07

Percepção e não-percepção

I
Contam de uma senhora que perdeu seu espelho e não mais se reconheceu. Se ao menos tivesse consigo uma foto, preferencialmente de seus dias de moça! Seria jovem outra vez, e com sorte, do melhor ângulo.

II
Num ônibus abarrotado, a caminho do centro, um funcionário público acorda de seus sonhos recorrentes de castelos e donzelas e volta ao purgatório diário de lotações e papéis. Às vezes se pergunta se o trabalho maçante na repartição não é o pesadelo recorrente de seu cotidiano de heróico cavaleiro. Pensa reconhecer no cobrador do 362 o ferreiro da aldeia.

III
Entrando na galeria de arte, o mapa trazia em grande destaque, sem nenhuma indicação adicional, mas obviamente com precisão: "VOCÊ ESTÁ AÍ." Outros mapas idênticos do lado de dentro também o localizavam sem erro, de onde quer que para eles olhasse. Acossado pelo pós-modernismo, bateu em retirada, mas logo percebeu que não havia mais fuga possível; mesmo na segurança de sua casa, estava agora permanentemente sitiado à distância pelos panópticos garrafais, o que destruiu primeiro seu casamento, e depois sua sanidade.

IV
Na sela de sua montaria, após longa jornada, um cavaleiro errante acorda de seus sonhos recorrentes de pacífica estabilidade e volta à tensão constante de enfrentar bestas devoradoras de gente e dragões que cospem fogo. Às vezes se pergunta se o perigoso resgate de gordas senhoras em troca de estadia e alimentação não é o pesadelo recorrente de seu cotidiano de tranqüilo burocrata. Pensa reconhecer na criatura de três cabeças o tesoureiro do reino.

V
A menina segurou o braço da avó para que esperasse enquanto juntava algo brilhante do chão. Era um espelhinho sujo e trincado; notou que as marcas adicionadas ao seu reflexo imitavam muito vagamente as rugas da nona. Pobre criança esperta, tão cedo assombrada pelo espectro da própria velhice.

3 comentários:

bernardo.vianna disse...

leci n'est pas une pipe... ;)

Anônimo disse...

Você tá lendo muito Borges, pelo visto.
O que é bom.

eluis disse...

magritte, sim; borges, não, exceto pelo "la casa de asterión", já há muito tempo. embora, pensando bem, realmente haja semelhanças.