Percepção e não-percepção
I
Contam de uma senhora que perdeu seu espelho e não mais se reconheceu. Se ao menos tivesse consigo uma foto, preferencialmente de seus dias de moça! Seria jovem outra vez, e com sorte, do melhor ângulo.
II
Num ônibus abarrotado, a caminho do centro, um funcionário público acorda de seus sonhos recorrentes de castelos e donzelas e volta ao purgatório diário de lotações e papéis. Às vezes se pergunta se o trabalho maçante na repartição não é o pesadelo recorrente de seu cotidiano de heróico cavaleiro. Pensa reconhecer no cobrador do 362 o ferreiro da aldeia.
III
Entrando na galeria de arte, o mapa trazia em grande destaque, sem nenhuma indicação adicional, mas obviamente com precisão: "VOCÊ ESTÁ AÍ." Outros mapas idênticos do lado de dentro também o localizavam sem erro, de onde quer que para eles olhasse. Acossado pelo pós-modernismo, bateu em retirada, mas logo percebeu que não havia mais fuga possível; mesmo na segurança de sua casa, estava agora permanentemente sitiado à distância pelos panópticos garrafais, o que destruiu primeiro seu casamento, e depois sua sanidade.
IV
Na sela de sua montaria, após longa jornada, um cavaleiro errante acorda de seus sonhos recorrentes de pacífica estabilidade e volta à tensão constante de enfrentar bestas devoradoras de gente e dragões que cospem fogo. Às vezes se pergunta se o perigoso resgate de gordas senhoras em troca de estadia e alimentação não é o pesadelo recorrente de seu cotidiano de tranqüilo burocrata. Pensa reconhecer na criatura de três cabeças o tesoureiro do reino.
V
A menina segurou o braço da avó para que esperasse enquanto juntava algo brilhante do chão. Era um espelhinho sujo e trincado; notou que as marcas adicionadas ao seu reflexo imitavam muito vagamente as rugas da nona. Pobre criança esperta, tão cedo assombrada pelo espectro da própria velhice.
Contam de uma senhora que perdeu seu espelho e não mais se reconheceu. Se ao menos tivesse consigo uma foto, preferencialmente de seus dias de moça! Seria jovem outra vez, e com sorte, do melhor ângulo.
II
Num ônibus abarrotado, a caminho do centro, um funcionário público acorda de seus sonhos recorrentes de castelos e donzelas e volta ao purgatório diário de lotações e papéis. Às vezes se pergunta se o trabalho maçante na repartição não é o pesadelo recorrente de seu cotidiano de heróico cavaleiro. Pensa reconhecer no cobrador do 362 o ferreiro da aldeia.
III
Entrando na galeria de arte, o mapa trazia em grande destaque, sem nenhuma indicação adicional, mas obviamente com precisão: "VOCÊ ESTÁ AÍ." Outros mapas idênticos do lado de dentro também o localizavam sem erro, de onde quer que para eles olhasse. Acossado pelo pós-modernismo, bateu em retirada, mas logo percebeu que não havia mais fuga possível; mesmo na segurança de sua casa, estava agora permanentemente sitiado à distância pelos panópticos garrafais, o que destruiu primeiro seu casamento, e depois sua sanidade.
IV
Na sela de sua montaria, após longa jornada, um cavaleiro errante acorda de seus sonhos recorrentes de pacífica estabilidade e volta à tensão constante de enfrentar bestas devoradoras de gente e dragões que cospem fogo. Às vezes se pergunta se o perigoso resgate de gordas senhoras em troca de estadia e alimentação não é o pesadelo recorrente de seu cotidiano de tranqüilo burocrata. Pensa reconhecer na criatura de três cabeças o tesoureiro do reino.
V
A menina segurou o braço da avó para que esperasse enquanto juntava algo brilhante do chão. Era um espelhinho sujo e trincado; notou que as marcas adicionadas ao seu reflexo imitavam muito vagamente as rugas da nona. Pobre criança esperta, tão cedo assombrada pelo espectro da própria velhice.
3 comentários:
leci n'est pas une pipe... ;)
Você tá lendo muito Borges, pelo visto.
O que é bom.
magritte, sim; borges, não, exceto pelo "la casa de asterión", já há muito tempo. embora, pensando bem, realmente haja semelhanças.
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