23.4.08

Horizonte laranja

Longe de olhos e ouvidos, fecho as portas, cubro as janelas, viro os espelhos, apago as luzes. O tempo falha, os relógios param e os calendários voam; as horas são longas, e os anos, curtos. Perco a conta dos dias enquanto me desfaço lentamente no vão profundo das lembranças alheias.

Uma pessoa se levanta e sai à rua, ninguém a reconhece, ela compra o jornal mesmo assim. Faz calor, mas não muito. Uma sirene de ambulância demora a passar ao longe.

27.11.07

Percepção e não-percepção

I
Contam de uma senhora que perdeu seu espelho e não mais se reconheceu. Se ao menos tivesse consigo uma foto, preferencialmente de seus dias de moça! Seria jovem outra vez, e com sorte, do melhor ângulo.

II
Num ônibus abarrotado, a caminho do centro, um funcionário público acorda de seus sonhos recorrentes de castelos e donzelas e volta ao purgatório diário de lotações e papéis. Às vezes se pergunta se o trabalho maçante na repartição não é o pesadelo recorrente de seu cotidiano de heróico cavaleiro. Pensa reconhecer no cobrador do 362 o ferreiro da aldeia.

III
Entrando na galeria de arte, o mapa trazia em grande destaque, sem nenhuma indicação adicional, mas obviamente com precisão: "VOCÊ ESTÁ AÍ." Outros mapas idênticos do lado de dentro também o localizavam sem erro, de onde quer que para eles olhasse. Acossado pelo pós-modernismo, bateu em retirada, mas logo percebeu que não havia mais fuga possível; mesmo na segurança de sua casa, estava agora permanentemente sitiado à distância pelos panópticos garrafais, o que destruiu primeiro seu casamento, e depois sua sanidade.

IV
Na sela de sua montaria, após longa jornada, um cavaleiro errante acorda de seus sonhos recorrentes de pacífica estabilidade e volta à tensão constante de enfrentar bestas devoradoras de gente e dragões que cospem fogo. Às vezes se pergunta se o perigoso resgate de gordas senhoras em troca de estadia e alimentação não é o pesadelo recorrente de seu cotidiano de tranqüilo burocrata. Pensa reconhecer na criatura de três cabeças o tesoureiro do reino.

V
A menina segurou o braço da avó para que esperasse enquanto juntava algo brilhante do chão. Era um espelhinho sujo e trincado; notou que as marcas adicionadas ao seu reflexo imitavam muito vagamente as rugas da nona. Pobre criança esperta, tão cedo assombrada pelo espectro da própria velhice.

A pedrada filosofal

Para Parmênides tudo é pedra, é preto-no-branco, brincadeira de espelhos. Heráclito atira a primeira pedra no rio e desafia seu oposto a buscá-la, e embora esteja certo de que o filósofo que saiu do rio não é o mesmo que nele entrou, não consegue negar que a pedra continua sendo a mesma pedra, apenas agora pedra molhada. Demoram-se muito neste impasse até que Spinoza intervém e anuncia que a pedra, o rio e os gregos são todos a mesma coisa e sempre mudando. Parmênides então nocauteia o holandês com uma pedrada, e Heráclito joga o intrometido no rio.

3.8.07

Mitos e lendas, vol. II: "O menestrel do norte"

Chegou à cidade grande ainda jovem, vindo de longe, tocando melodias que não havia composto, e cantando canções que não havia escrito; pois ali, afinal, quase ninguém compunha e tocava, e quase ninguém escrevia e cantava, e os poucos que o faziam, pouco eram ouvidos. Mas assim que conseguiu a atenção de todos com números emprestados, deixou correr seus próprios versos que lhe escorriam pelas mangas, pelos poros, pelo nariz; e o que era atenção transformou-se em idolatria. A metrópole, uma Hamelin majestosa que aguardava em suspense.

Cantava histórias do povo e histórias de reis, histórias de amor e histórias de guerras, cantava pelos desgraçados, cantava como se pudesse mudar o mundo, cantava como se pudesse mudar a história, conduzir a história, e foi neste pedestal logo o colocaram. A notícia da ascensão do magnífico bardo rapidamente correu o país, e logo todo o mundo conhecido já sabia seu nome; mas a multidão que o seguia dia e noite, acima e abaixo, aparecendo sob sua mesa no desjejum e sobre sua cama no anoitecer, esperando que a cada três passos escapassem dos anéis de seus cabelos novas respostas para os dilemas dos reis e dos homens, transformara o jovem e carismático trovador num cínico e críptico oráculo às avessas.

Primeiro atraiu a Hamelin cancerígena às águas revoltas, onde o choque levou mais de um dos ratos a chamá-lo de traidor, ironia escancarada numa réplica fulminante, quem acreditaria num rato, afinal? Em seguida cantou outra vez as histórias dos desolados, mas negou-lhes a desgraça; desdenhou os indiferentes que se pretendiam simpatizantes e apontou-lhes os perdedores em fila, chamando-os por belos nomes e transfigurando cada tragédia em compaixão mútua, ainda que não compartilhasse do mesmo tipo de piedade. Indiferença diferente, jogos de palavras, inversões de valores, folião em trajes de lorde, emitindo sentenças em código e verso, divertimento irresponsável, malabarismo de forma e caráter que se seguiria deste dia em diante.

***

Parcialmente escondido no alto da torre, ainda correu a vista pela distância, mas partiu antes da chegada dos cavaleiros. Vaga pela noite tamborilando, desafiando as horas, protesto lúdico em dança de roda; e assim o fará mesmo que por vezes o vento, a tempestade e o acaso o açoitem e o façam procurar abrigo, até que a amargura e a escuridão finalmente se tornem mais fortes e o coloquem à porta dos céus, onde ao menos não haverá ninguém esperando respostas impossíveis.

"It's not dark yet
But it's getting there."

2.8.07

Mitos e lendas, vol. I: "A cruz de Osterberg"

Pobre dínamo ensangüentado, I feel alright apesar da auto-flagelação e da reprovação dos filisteus, ou seria por causa de?, no confronto, na provocação, na negação da negação, no vivo sangue que escorre e reflete as poucas luzes, absorve todas as luzes, faz brilhar impossivelmente este pobre dínamo ensangüentado que se move mais e mais depressa, perde o controle das pernas, dobra os joelhos desafiando a anatomia até que finalmente implode sob si próprio, I feel alright, I feel alright!, e então os ruídos cessam, a escuridão afrouxa, o pobre dínamo ensangüentado e esgotado é arrastado para fora com a ajuda de uns poucos companheiros enquanto os filisteus se alternam entre a raiva e a incertidão, e não percebem que acabaram de testemunhar um mártir, um salvador, um escolhido, um messias, um gênio, um louco que lhes trazia uma verdade, uma destas raridades que os homens eternamente procuram mas raramente encontram, e que é próprio dos filisteus pensar já tê-las quando na verdade não poderiam estar mais longe. Mas amanhã as chagas já estarão curadas, e novas serão abertas, porque é assim que estas coisas são, e afinal haverá quem compreenda tudo aquilo, I feel alright, o sangue, o ruído, a dança de São Vito, e haverá quem reconheça nisto a verdade que arrebenta as paredes, e então estes também se sentirão bem, e haverá entendimento, e tudo estará em ordem e tudo correrá melhor, ainda que em meio ao sangue e ao suor, pois é assim que estas coisas são.

(Los Angeles, 1970.)

22.5.07

Quais últimas palavras

I
Champs-Élysée. Fim de tarde. Um casal de meia-idade sentado à mesa de um elegante café. Não são franceses, são americanos. Estão lá a passeio, como fazem todos os anos. Ambos sorriem muito, não por vontade, mas por costume. Ela descobriu que ele tem um caso com a chefe; ele sabe que ela dá pra qualquer um. Ambos colocaram veneno no café do outro. Ou pensam que colocaram, ambos remexeram os pertences do outro no hotel antes de sair e trocaram o veneno alheio por um placebo.

II
Marina de Monte Carlo. Alta madrugada. Um excêntrico milionário russo radicado na Grã-Bretanha promove uma festança em seu iate, que está prestes a deixar o cais para que a festa possa se transformar em orgia sem ser importunada pelos paparazzi. Mal sabe ele que as modelos e escorts contratadas estão a serviço de um tablóide inglês, trazendo microcâmeras escondidas nos implantes de silicone. Ao amanhecer, as bancas londrinas já estamparão detalhes sobre costumes e obturações tanto seus quanto de seus colegas.

III
Pirâmides de Gizé. Três da tarde. Um grupo de turistas japoneses tira fotos das pirâmides, do deserto, do sol, do guia, dos outros turistas japoneses. O guia já conduziu muitos grupos de turistas japoneses que tiram foto de tudo, mas isso não o deixa menos incomodado, pelo contrário. Quando um dos turistas japoneses lhe pede para que pose como os egípcios dos hieróglifos ("e dos videoclipes"), não é mais possível agüentar: ferido tanto no orgulho cívico quanto no pessoal, ele perde o controle e grita, chora, se desespera, agita os braços freneticamente na direção dos turistas japoneses que para ele são todos iguais, todos superficiais com suas câmeras e bonés e camisas e rostos todos iguais. Os turistas japoneses então todos dizem "oh!" e tiram mais fotos do guia.

IV
Avenida Paulista. Por volta do meio-dia. Os bancos e escritórios despejam o mar de engravatados no sertão de concreto dos imigrantes que habitam as calçadas. A caminho do carrinho que vende sanduíches de calabresa, alguns dos supracitados cidadãos deixam esmolas para um decrépito aleijado. Não percebem se tratar de Dom Sebastião, legítimo herdeiro e abençoado salvador do império português, ex-colônias possivelmente incluídas. Ao retornar do almoço ainda irão reclamar que o país não vai para a frente, além de culpar o stress pela indigestão.

V
Champs-Élysée. Fim de tarde, um ano depois. O mesmo casal americano de meia-idade sentado à mesa do mesmo elegante café. Ambos sobreviveram a várias tentativas de assassinato por parte do outro. Desta vez, cada um envenenou o próprio café. Ou pensam que envenenaram, ambos remexeram os pertences do outro no hotel antes de sair e trocaram o veneno alheio por um placebo.

15.5.07

A banda

Às vezes, até aqueles que sempre caminham apressados pensam ter ouvido música na distância, no vento, na poeira que insiste em entrar nos olhos. Pensam ter visto música, ter sentido música. Param por um segundo e deixam que o quase-silêncio toque as notas que trazem de volta a leveza dos movimentos. Mas após esta eternidade esfregam a poeira dos olhos com a manga da camisa e seguem adiante com seu passo apressado. As lágrimas, apenas utilitárias.

Acontece que, muito raramente, um ou outro destes ocupados indivíduos esbarra na banda, e sabe-se que durante estes últimos e agonizantes instantes em que são pisoteadas pelos trompetistas, pratistas e, nos casos mais graves, até pelo tocador de tuba, muitas das vítimas deixam escapar um sorriso incólume, o que faz com que a banda acelere o compasso e as testemunhas o passo. As lágrimas, pequenas dúvidas com gosto de sal.

10.4.07

O príncipe

Era uma vez um príncipe que construiu um castelo de palavras numa planície gélida; durante os eternos invernos inclementes, prosa e poesia o protegiam da intempérie, e nas manhãs e meio-dias em que o frio arrefecia, as varandas davam vista a um deserto branco e vasto. Mas os castelos de palavras só precisam de silêncio para cair, e assim o príncipe vivia em eterno terror, imaginando se este seria o ano em que as caravanas deixariam de passar, condenando seu reduto à lenta e certa erosão sob as tempestades de neve que afugentam os viventes para, semanas, meses ou anos depois, quando a primeira coluna cedesse, transformar-se finalmente num mausoléu de ruínas congeladas.

Então, sempre que um viajante aparecia - coisa que não acontecia com freqüência, já que não só seus domínios ficavam muito longe de qualquer cidade ou vila, como também eram de difícil acesso mesmo para aqueles que conheciam a localização - sempre que um peregrino aparecia, o príncipe aproveitava a oportunidade para repassar seu repertório de palavras, a fim de reafirmar a confiabilidade da fortaleza e impressionar os visitantes para que estes sempre levassem boas notícias às caravanas mercantes que abasteciam o castelo. Não de víveres, é claro, já que o castelo era, como é de se esperar de um castelo, auto-suficiente neste respeito; e nem de artigos de luxo, já que o príncipe, apesar de considerado excêntrico, era na verdade relativamente modesto. O que era necessário, e mesmo indispensável, eram as longas conversas com os mercantes, que, tendo visitado o país e visto de tudo um pouco, traziam sempre novidades a partir das quais o príncipe construiria novas histórias, fosse para expandir uma ala quando possível, fosse para consertar as muralhas quando preciso - o que pode-se e deve-se dizer como sendo "quase sempre".

Mas nem mesmo os viajados mercantes das caravanas da região poderiam sustentar o castelo eternamente, já que um dia as suas histórias também se esgotariam; e além disso, a troca de anedotas e episódios não lhes parecia vantajosa, já que, apesar da generosidade e hospitalidade do príncipe, eles passaram a se perguntar como e porque é que eles, que tinham que abrir caminho em meio às nevascas por dias até chegarem ao castelo, continuavam vendendo o que eles viam como "velharias de pouco valor", enquanto o príncipe, que "nada fazia", ostentava seu majestoso domínio como "um pavão se exibindo num galinheiro". Assim sendo, num certo ano as caravanas simplesmente decidiram que não fariam mais a rota passando por ali, tomando no lugar um outro traçado que evitava a região mais fria; e com o fim da rota comercial da planície, pouco a pouco os peregrinos também deixaram de trilhar o caminho do castelo. Logo não havia mais quem tivesse notícia do príncipe, e nem quem levasse notícias do mundo até ele; até que, após algum tempo, tanto o príncipe quanto o castelo foram simplesmente esquecidos, não por maldade, mas por esquecimento, mesmo.

E assim continuaram as coisas por anos e anos e anos, até que um intrépido explorador, que havia ouvido falar no lendário castelo de palavras ao visitar um vilarejo da região quando ainda era criança, decidiu se aventurar além da fronteira, atravessando a floresta e entrando no deserto de gelo em busca daquela construção magnífica. Seus amigos tentaram impedi-lo, dizendo: "ninguém sabe onde o castelo ficava, você se perderá e morrerá no frio!" Sua esposa tentou proibi-lo, dizendo: "você não pode me abandonar, você se perderá e morrerá no frio!" E seu companheiro de muitas expedições, que não era tão intrépido quanto o intrépido explorador, tentou dissuadi-lo, dizendo: "eu não quero me perder e morrer no frio!" Mas o aventureiro não pôde ser impedido, nem proibido, nem dissuadido; e, quando ele finalmente partiu sozinho rumo à infinita planície congelada, seus ex-amigos, sua ex-esposa e seu ex-companheiro concordaram que ele havia enlouquecido, e pensaram: "que se perca e morra no frio".

Até hoje, o explorador não voltou. Não se sabe ao certo o que aconteceu com ele, embora todos concordem em concordar que ele simplesmente se perdeu e morreu no frio, como era de se esperar; alguns até imaginam, embora poucos admitam, que talvez ele tenha até mesmo encontrado as ruínas do castelo, mas provavelmete se perdeu e morreu de frio antes que conseguisse voltar. No entanto, ainda há as raras almas que acreditam - embora não admitam, sob risco de serem tachados de loucos - que o explorador não só encontrou o castelo, como o encontrou ainda de pé, e que, junto com o príncipe, o está restaurando com relatos de suas extensas e magníficas viagens mundo afora, e que um dia não só este destemido aventureiro retornará para contar sua mais extraordinária história, como também que o castelo do príncipe se tornará tão vasto e grandioso que será possível vê-lo de qualquer lugar do país, e que então viajantes de todas as regiões visitarão o príncipe e aprenderão, também, a construir suas casinhas de palavras.

2.3.07

Lei da sopa, vol. II: "A caixinha de música"

(publicado originalmente em janeiro de 2005)

Chegou em casa ainda cambaleando de felicidade depois do primeiro beijo. Saltitou até o quarto e pegou a caixinha de música. Pulou na cama, deitou-se de bruços, colocou a caixinha no travesseiro, deu corda e abriu devagar a tampinha. Mas, ao contrário do que esperava, não ouviu a musiquinha de que tanto gostava. "E eu, como é que fico?", disse uma voz fina de dentro da caixinha. Mal a última palavra foi dita, a menina fechou rapidamente a tampa, assustada. Um "ai!" abafado ainda pôde ser ouvido.

Ficou parada, boquiaberta, por alguns segundos. Olhou em volta, mas não havia mais ninguém no quarto. Foi até a porta e inclinou-se para o corredor. Estava vazio. Fechou a porta e atravessou o quarto na direção da janela. Também não havia ninguém do lado de fora. Fechou as cortinas e pulou de volta na cama. Pegou a caixinha de música nas mãos e a levou lentamente até perto do ouvido. Não ouviu nada, então sacudiu-a. Além dos esperados chacoalhares dos anéis e brincos ali guardados, ouviu também um grito agudo. Jogou a caixinha no travesseiro e gritou também.

Após um minuto a mãe bateu à porta. Perguntou se estava tudo bem. Ela respondeu que sim. Esperou mais um minuto até ouvir a mãe se afastar antes de fazer alguma coisa. Decidiu, então, descobrir do que se tratava aquilo tudo. Encheu-se de coragem e abriu a caixinha de música.

"Você não pode fazer isso comigo!", disse a pequena bailarina de porcelana da caixinha, num misto de raiva e choro. "Nem isso, muito menos... muito menos aquilo!"

A menina nunca vira a bailarina fazer outra coisa a não ser girar sobre seu próprio eixo enquanto a musiquinha tocava, e tinha a caixinha de música desde quando era muito bebezinha. Nunca imaginou que aquela pecinha de porcelana tivesse vida, muito menos que falasse, embora já tivesse considerado que tivesse sentimentos. Tentou contemporizar:

"Eu não sabia..."

"Você não sabe nada! Pensa que ele gosta de você?"

Também nunca passara por sua cabeça que a bailarina pudesse conhecer o que se passava fora não só da caixinha, como do quarto e da casa. Aparentemente, não sabia nada mesmo. A voz fina repetiu a pergunta:

"Pensa que ele gosta de você?"

"Eu não... eu acho... eu acho que sim..."

"Você não sabe nada! Ele é igual a todos os outros."

"Hã?..."

"É igual a todos os outros!"

"Os outros... os outros o quê?..."

"Os outros homens!"

"Os outros... todos os outros?..."

"Todos! Não se engane. Eles só querem uma coisa."

"Hã?..."

"Eles só querem uma coisa!"

"Só uma coisa?..."

"Só uma coisa!"

"Só um beijo?..."

"Não! Querem fazer coisas horríveis com você. São uns brutos."

"Mas..."

"Não quero ouvir! Você não pode fazer isso comigo. Você me traiu! Você sabe que eu te amo!"

"Hã?..."

"Eu te amo!"

A menina, que já estava preocupada com a situação, prendeu a respiração por um segundo, olhando para a pequena bailarina. Então, com um gesto brusco, tampou a caixinha, ofegando violentamente. Respirava com tanta dificuldade que nem ouviu um novo "ai!" abafado. Não estava entendendo nada. Esperou alguns minutos até se acalmar, e então foi à procura da mãe para fazer-lhe uma pergunta que, esperava, esclareceria sua visão. Encontrou-a na cozinha, lavando a louça.

"Mãe, quando uma menina diz que ama outra menina, é normal?"

Um prato caiu e estraçalhou-se dentro da pia. O pai, sentado numa poltrona na sala ao lado, lendo o jornal, engasgou com o cachimbo, mas preferiu não se meter. Continuou a leitura, embora com um ouvido na cozinha.

"Filha..."

Não sabia o que dizer.

"Não é normal não, né, mãe?..."

A mãe respirou aliviada. "Não é não, filha." A menina sorriu e correu de volta para o quarto. O pai continuou lendo o jornal.

Chegando no quarto, abriu a caixinha de música. A bailarina estava aos prantos:

"Isso já é demais! Conservadorismo! Preconceito! Discriminação!"

A menina apenas sorriu e tampou de volta a caixinha, para um novo "ai!". Subiu de pé na cama e a guardou no armário, o mais alto que conseguiu. Deitou-se e ficou sonhando com o namoradinho.

Ao mesmo tempo, em outro lugar do bairro, ele também pensava nela, embora não estivesse exatamente sonhando.

16.2.07

Aplastado

Terminou a cerveja e percebeu o sujeito à sua esquerda no balcão olhando torto. Não era dali, é claro que iriam olhar torto. Achou ter visto o sujeito cerrar o punho, não dava para saber, não estava olhando para o sujeito, o sujeito é quem olhava. Na dúvida, não esperou para saber e nem pensou em perguntar. Antes mesmo de olhar de volta arrebentou o queixo do sujeito, uma só e mandou direto pro chão. Não gosto de confusão, mas tem gente que provoca, mesmo.

Daí não tinha mais volta. Outros dois se levantaram nos bancos mais à esquerda, um puxou um canivete. Tudo muito rápido, antes que o barman percebesse a confusão ou recolhesse a garrafa vazia o gargalo quebrado já dava conta dos dois, que recuaram tão depressa quanto levantaram. Esses caras, não valem nada, não agüentam dois minutos, cadê o próximo?

Não demorou para o próximo aparecer, grandalhão, tatuagem pra todo lado, de meter medo, mas meter medo em quem, nem precisou da garrafa quebrada. Duas ou três porradas bem dadas no meio do estômago e o grandalhão já estava grogue, mais rápido, cara, mais rápido, todo esse tamanho e lento desse jeito. Só foi rápido pra cair, isso sim, esse bando de mané, pequeno, grande, é tudo mané, querem briga, é? Só tem mané, tudo igual, só tem mané.

Nisso o barman se levanta atrás do balcão, carregando uma escopeta maior que ele. Coitado, tá tremendo mais que vara verde, vai fazer o quê com isso aí, tu não vai atirar não, eu sei que tu não vai, tu é muito banana pra atirar. Mas o barman não é tão banana assim e atira, só que treme tanto que só acerta de raspão e antes que pegue outro cartucho já levou meia dúzia de joelhaços na cabeça. Só precisou de um pra derrubar, mas filho duma puta, essa jaqueta era quase nova, olha agora, cheia de buraco aqui na manga, um monte de sangue, não vai sair tão fácil, puta que o pariu, toma mais um monte pra aprender, seu filho duma puta. Tudo filho da puta.

Foi então que alguém o acertou em cheio nas costelas. Não viu quem foi, nem de onde veio, só sentiu o baque e dobrou para o lado. Mal terminara de se dobrar e tomou outra do outro lado. Caiu para a frente e vai-saber-lá-quantos caíram em cima. Tomou soco, pontapé e cadeirada até se fundir com o chão. O sangue escorrendo pelo canto da boca, preenchendo as narinas, sufocando os sentidos. Pouco a pouco, os ouvidos também parecem encher, e a vista fica turva. Bando de animais, não dá nem pra tomar uma cerveja em paz. Da próxima vez, vou armar um barraco.